SUBSTRATO GUARANI
Fazendo uso da técnica da cromatografia de Pfeiffer, junto com a escuta sensível, o projeto Substrato é uma investigação sobre as variadas correlações multiespecíficas entre a vida microscópica do solo e a vida dos agricultores Guarani nas aldeias do território Tenondé Porã, na zona sul de São Paulo.
Realizado entre agosto e dezembro de 2022, o projeto buscou articular e fazer confluir uma série de imagens, experiências, seres e sonoridades, no desejo de fortalecer e ampliar a percepção sobre modos de vida e resistência emaranhados com o solo.
Convidamos 6 agricultores Guarani para falar sobre suas experiências, percursos e desejos em relação aos plantios. Escutamos cada um deles falar em sua língua.
Todas as gravações foram realizadas junto dos roçados, na presença das plantas ou do solo recém preparado para o plantio. As captações foram feitas por jovens mulheres da aldeia Kalipety, Kerexu Mirim e Kerexu Martim.
Escutamos: Manoel Lima, Pedro Karai Miri, Jera Guarani, Vera Pires, Karai Claudio e Wera Alcides.
Outros sons como o de pássaros, trens, vozes distantes, vento nas folhas ou o atrito de ferramentas, também foram captados em meio aos roçados e durante os mutirões de plantio.
Junto da atenção dada aos agricultores, nos agachamos para tocar e perceber os seres e as coisas microscópicas que habitam o solo, cujas existências mobilizam, metabolizam e transformam a condição da matéria nas assembleias das associações interespecíficas dos roçados.
Como ferramenta de escuta especulativa e imaginativa desse mundo microscópico, além de prestar atenção às diversas texturas, cores e os cheiros da terra, desenvolvemos um conjunto de retratos de cada um dos solos coletados pelos agricultores, fazendo uso da técnica da cromatografia de Pfeiffer.
A técnica da cromatografia de Pfeiffer utilizada de forma poética neste trabalho, é um método científico de leitura da qualidade da vida do solo que é feita através da interpretação dos desenhos, das formas e das cores que os componentes minerais, orgânicos, eletromagnéticos e energéticos (em interação) formam em um cromatograma.
A cromatografia de Pfeiffer pode ser considerada um tipo de fotografia, uma vez que utiliza de um processo físico-químico semelhante ao utilizado na revelação fotográfica, só que ao invés de registrar imagens a partir de uma câmara escura,
a imagem obtida é feita através de uma amostra de solo moído e misturado com uma solução de hidróxido de sódio, absorvida por capilaridade para um papel filtro emulsionado previamente com nitrato de prata.
A grande qualidade desse método é que parte do princípio de que a qualidade da terra não pode ser medida pela quantidade isolada de componentes minerais, mas sim pela atividade e pela interação entre os diversos componentes existentes em um determinado momento.
Por esse motivo, quem usa esse método, compartilha da ideia de que o solo não é um lugar inerte, mas composto por uma diversidade de elementos químicos e microrganismos vivos, tais como bactérias, fungos e micróbios, que juntos constituem um tipo de comunidade multiespecífica em constante transformação. Além disso, a cromatografia de solo é um método científico simples, acessível e independente, que permite que qualquer pessoa possa realizar suas próprias análises sem ter que recorrer ao serviço custoso de um laboratório.
A tradução dos depoimentos em Guarani, foram feitas por Jordi Karai Mirĩ, e as leituras das Cromatografias de Pfeiffer, pelo Agrônomo Sebastião Pinheiro.
A partir destas traduções, o músico Rodolfo Valente pontuou marcações de assuntos, palavras chaves, para crias associações semânticas e sugerir “materialidades” ou “materiais” sonoros dentro dos trechos das falas em cada uma das peças.
Os sons utilizados são das gravações feitas nas aldeias, com alguns processos de transformação, sendo o principal deles o de “granulação”, também conhecido como “síntese granular. Este processo é bastante comum na musica eletroacústica, sendo utilizado pela primeira vez em 1958 pelo compositor grego Iánnis Xenákis, que picotou pequenos trechos de uma fita magnética, os reorganizou e colou de volta para produzir novos sons.
Em cada uma das peças sonoras de Substrato Guarani, o processo de “granulação” é feito de maneira digital, com um programa que “picota” os sons e permite que sobre cada um desses pequenos fragmentos possam ser aplicados diferentes parâmetros, como duração de cada grão, variações dessa duração, transposições para o grave ou agudo, densidade, intensidade, distribuição no espaço, entre outros.
O interessante deste procedimento é que embora se parta de um registro de uma fonte sonora concreta, este som acaba se transformando em outra coisa completamente distinta e abstrata. Como um material em estado de decomposição no solo, tendo suas partes sendo digeridas e transformadas pela ação de outros organismos.
O processo de “síntese granular” na musica parece encontrar certa equivalência com o preparo do solo para se fazer uma cromatografia de Pffeifer. A amostra do solo coletada precisa ser seca, peneirada, pilada, novamente peneirada em uma trama super fina, para daí se obterem os grãos mais minúsculos possíveis.
Desses grãos diluídos em Hidróxido de Sódio em contato com o Nitrato de Prata que veremos minerais, moléculas orgânicas, proteínas, vitaminas e outras substâncias formarem complexos que resultam em diferentes cores, formas e estruturas como setas, dentes, zonas e círculos. Uma nova imagem que se forma a partir da recomposição de bilhões de grãos inacreditavelmente expressivos.
Da mesma forma, sementes e grãos de todos os tipos e espécies podem se juntar a essa sinfonia conceitual da “granulação” sonora. Aproximar mundos, criar sobreposições e associações férteis. Tudo isso faz muito sentido, quando se busca construir dinâmicas colaborativas. Resultados inesperados surgem desses encontros. Substratos férteis.
Nas investigações sobre o solo do território Tenondé Porã, descobrimos inúmeros depósitos multicoloridos de barro e argila, e nos perguntávamos sobre quais eventos e circunstâncias históricas teriam feito desaparecer a arte cerâmica entre os Guarani da região. Havíamos pesquisado sobre artefatos arqueológicos, urnas funerárias, recipientes de barro e o cachimbo petynguá, encontrados em escavações e antigos sambaquis. Perguntei para algumas pessoas da aldeia sobre o por quê desta ausência, mas ninguém soube me responder.
O petynguá, o cachimbo cerimonial dos Guarani Mbya, é um objeto ritualístico sagrado, que abre o caminho para a comunicação com as divindades, sociedades e subjetividades constituintes do cosmos. Usado até os dias de hoje em cerimônias de nominação de crianças, para curar doenças, antes de se cantar, dançar ou jogar na Opy (Casa de reza Mbya Guarani), para dar um banho de fumaça nos instrumentos musicais, assim como sobre as sementes e os cultivos para proporcionar uma boa colheita, fumar o petynguá é um ato cotidiano de resistência.
Para alguns estudiosos, os petynguás são os únicos artefatos sobreviventes da cultura ancestral que ainda possuem sua função espiritual viva.
Na aldeia Kalipety todos os petynguás são de nó de pinho, e outras madeiras duras. Como ninguém os fabrica, são comprados ou trocados com pessoas de outros territórios.
Em companhia de Pablo Paniagua conversamos com algumas das lideranças da aldeia sobre a possibilidade de fazer um Petynguá utilizando técnicas de queima ancestrais. Vocês acham que seria importante resgatar essa tradição?
Começamos algumas vivências com argila, convidando quem quisesse a modelar formas de animais ou utensílios diversos. As crianças são as primeiras a se aproximar.
uma família ficou interessada em modelar os artefatos. Karai Tiago e um de seus filhos produziram diversos modelos e tamanhos de Petynguás. Os objetos “brotaram” com facilidade de suas mãos. Pablo conduziu o processo de queima utilizando uma lata metálica como forno e serragem para a combustão.
Petynguás pretos, pintados pela fumaça, são como antídotos para a extinção. Petynguás fazem substrato. Petynguás de cerâmica organizam ao seu redor nuvens de resistência.