CANTEIRO-ASSEMBLEIA
Na frente do quintal* de casa observo um dos canteiros suspensos no qual um grupo insólito de espécies vegetais crescem juntas.O canteiro é feito de madeiras reaproveitadas de caçamba, sua medida é um metro e dez centímetros de largura por cinquenta e sete centímetros de comprimento. Sua profundidade é de quinze centímetros. O grupo é composto por diversas hortelãs, cebolinhas, um abacaxi, um pé de couve, espinafres, 2 maracujás, erva cidreira de folha, um melão, 4 pés de Camapus (Phisalis) e ervas espontâneas como trevinhos de três folhas e gramíneas.
O espaço é realmente apertado, e pra viver nele as espécies negociam constantemente entre elas. Essa “conversa”, imagino, pode ocorrer de diversas maneiras, uma delas acontece no subsolo, através de redes de raízes finíssimas, que conectam as plantas umas com as outras, com fungos e outras substâncias
e seres.Dessa maneira, elas trocam informações, disputam
ou compartilham nutrientes, avisam sobre os perigos, como infestações de formigas ou taturanas famintas. A outra maneira de negociação acontece na superfície, quando por exemplo, uma das plantas faz sombra para outra ou então disponibiliza seu tronco como apoio para sua vizinha. Do meu ponto de vista, este canteiro é um espaço vivo – povoado de conversas, de conspirações e associações, que com todo seu excesso compõem uma espécie de assembleia multiespécie.
Observação a respeito do desaparecimento dos quintais nas casas urbanas em SP
Canteiro - assembleia.
O canteiro de madeira certamente não é o melhor lugar para tantas plantas. Se estivessem em um lugar como uma horta ou um quintal com maior volume de terra, as plantas teriam melhores oportunidades para se desenvolver. Mas é ali que elas estão, e eu, como “criadora” do arranjo, me comprometo diariamente em fazer com que ele “funcione” e prospere. Todas minhas intervenções cumprem esse propósito, embora isso requeira uma dose de “controle” sobre certas plantas, especialmente sobre as que se mostram mais rápidas ou agressivas em suas táticas de ocupação e reprodução no território. Mas sempre me pergunto, e se não fizesse absolutamente nada? Outras sementes e forças tomariam
o meu lugar? É a jardinagem uma forma de fazer política/ estética* , na qual se distribuem, se recortam e se definem partes respectivas, exclusivas ou comuns? ou simplesmente uma maneira de exercer o controle?
Para dar essa resposta gostaria de deslocar o meu papel como jardineira e protagonista deste relato, na tentativa de espargir essa posição para compartilhá-la com outras espécies que atuam nessa composição/arranjo/assemblage naturocultural**. Para isso, é preciso reforçar essa imagem de uma assembleia multiespécie.
Esse exercício não é banal, ele se alia a uma tarefa importante em nossos tempos, que é a tarefa de desfazer o argumento clássico da excepcionalidade humana e de se renovarem as relações de maneira geral no mundo e com o mundo. Ao localizar certas especialidades e capacidades como exclusivas de nossa espécie, ao mesmo tempo que inexistentes ou imperfeitas nas demais formas de vida (chegando a estender esse procedimento excludente para categorias culturais, raciais ou de gênero), se constrói uma artimanha bastante oportuna para se explorar, abusar e aniquilar o outro, evitando assim qualquer compromisso de responsabilidade.
*Tomo aqui de empréstimo a relação entre política e estética que Jacques Ranciére descreve em seu livro “A partilha do sensível”, quando fala que as práticas artísticas são “maneiras de fazer” que “intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visivilidade” (...) A política, por sua vez, ocupa-se “do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÉRE, Jacques.A Partilha do sensível, P. 17). Ranciére faz notar aí pontos de junção entre essas duas práticas, a tal ponto que vê na democracia uma espécie de regime estético da política.
** Incorporo a noção de paisagem de Anne Tsing repleta de assembleias e dinâmicas coletivas: “paisagens são o sedimento concreto de fluxos vitais, condições atmosféricas, sonhos, memórias e representações.” (...)assembleias de seres vivos e materiais não vitais, socialidades marcadas por ações intencionais e não intencionais mais que humanas, emergência de novos modos de existir face à destruição dos emaranhados que dão forma à paisagem. Paisagens têm histórias particulares e possibilitam emergir modos de vida que não condizem com os padrões expressos pelos conceitos de espécie ou sociedade.” (TSING, Anne. Viver nas Ruínas. P. 9)
Canteiro - assembleia. Detalhe ( Hortelã, Camapus, Cebolinhas e Maracujá)
Tentando deixar por um tempo as categorias binárias e antropocêntricas de lado, a jardinagem poderia ser considerada como mais uma das conversas que acontecem na paisagem naturocultural. Na prática da jardinagem, aquilo que era considerado como inanimado ou “passivo”, a saber – não somente o mundo vegetal, mas todas as coisas com as quais convivemos e lidamos para além de nós mesmos, indivíduos da mesma espécie - é percebido como dotado não apenas de movimentos e de presença, mas de comportamentos, ou então de “potencias de agir”* , tão atuantes e condicionantes quanto a razão que anima qualquer um de nossos corpos humanos.
Proponho então uma jardinagem como composição, como mistura, como conversa entre um conjunto de existentes e formas de existência. Uma jardinagem que também possa se entender como uma forma de fazer política entre viventes (e não viventes).
Creio que essa “maneira” de lidar com os seres materiais, subvertendo as respectivas posições clássicas de sujeito e objeto, capacita uma “outra” maneira de se fazer e de pensar as práticas da jardinagem. Vale a pena recordar como alguns autores viram no jardim a consagração de um lugar “distinto” do mundo, no qual a natureza, alterada pelo trabalho humano, torna visível e devolve ao paisagista ou jardineiro suas próprias ideias e sentimentos. Rosario Assunto** , por exemplo, em seu livro ontologia e teleologia do jardim, fala do jardim como “um sentimento/pensamento que se converteu em lugar”. Enredado na mesma trama, o poeta Rilke, dizia que o jardim é um espaço “no qual a interioridade se transforma em mundo, e onde o mundo se interioriza.”
Aparentemente inocente, o jardim-relógio é uma imagem bastante ilustrativa de uma natureza submetida às regras e as leis retóricas de uma visão do universo como máquina, no lugar de um organismo vivo. Já no século XVI, Francis Bacon, pai da ciência moderna, argumentava sobre a necessidade de se submeter a natureza (através da ciência e da máquina) para dela se obter benefícios para o “bem da raça humana”. Dizia também “A natureza deve ser ligada ao trabalho, feita escrava, ser controlada e modelada pela técnica/arte mecânica” Por isso, não consigo deixar de ver nesse jardim-relógio, uma face perversa do pensamento e da vontade humana
*Bruno latour recupera o termo "Potências de agir" de Espinosa para abordar a questão da capacidade de ação presente em seres materiais (ou da natureza) considerados supostamente inertes pela ciência. Latour propõem aos leitores que prestem atenção nos repertórios que humanos e não humanos possuem em comum, e nas multiplicidades dos “modos de ação” que interligam personagens considerados distintos. (LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. P. 86)
** Para Assunto, um jardim é “A natureza enquanto tal modelada pelo homem para expressar nela seu espírito; utilizando as diversas técnicas da agricultura, a arquitetura, a hidráulica, ou a manualidade escultórica, com a finalidade de fazer do ambiente natural um lugar no qual viver e contemplar se tornam a mesma coisa”. (ASSUNTO, Rosario. Ontología y teleologia del jardín. P.39)
Canteiro-relógio visto na cidade de Versalles, França. Março de 2020.
Buscando uma alternativa na maneira de conceber um jardim, ou uma “virada ontológica” no jardim, convoco novamente a ideia de uma assembleia multiespécies, com o intuito de pensar esse lugar não apenas como um ambiente ou espaço cultivado e idealizado pelo humano, mas ademais, como uma fértil coletividade. E nesse arranjo particular, que vai muito além do que o olho e a razão podem contemplar, participam potências diversas de agir – mundos vegetais, animais e minerais. E seus assuntos, transações, interações e conflitos, metamorfoseiam- se incessantemente sob o céu, para se misturarem ao húmus da terra, em dinâmicas de vida e morte.
Voltando ao canteiro cultivado em minha casa, basta estar atenta para entender que as plantas percebem, respondem, reagem e até protestam a qualquer evento no ambiente.* Algumas
são mais sensíveis ou exigentes do que outras e ficam com as folhas amareladas ou pequeninas para demonstrar que estão se esforçando para seguir adiante. Isso tem ocorrido com o melão (Cucumis Melo), uma espécie rasteira de clima mais árido, que provavelmente não está muito contente nesse canteiro, mas na tentativa de seguir vivo, se livra rapidamente das folhas antigas e doentes para concentrar sua energia em projetar folhas novas. Primeiro achei que o problema fosse o excesso de irrigação, mas pesquisando o padrão de manchas nas folhas, descobri se tratar de um fungo. Tentei curá-la com diversas receitas caseiras que encontrei em sites na internet, mas nenhuma deu resultado. Depois, lembrando dos ensinamentos da Ana Primavesi** sobre a saúde do solo, adubei a terra com biocomposto, na expectativa de que uma revitalização húmica ajudaria a planta a se fortalecer, mas a mudança foi pouca. Por último, encontrei a alternativa de sacrificar a planta para que a doença não se propagasse. Esta solução é bastante indicada por diversos agrônomos. Mas será que isso seria realmente necessário? Como descobri que aquele fungo específico aparentemente não prejudica as outras plantas, deixei ele continuar no canteiro. Às vezes até tenho a impressão de que está superando a doença, mas não sou nenhuma especialista em fitopatologias.
* “As plantas podem perceber o ambiente que as rodeia, com uma sensibilidade mais elevada que a dos animais; competem ativamente pelos limitados recursos disponíveis no solo e na atmosfera; avaliam com precisão as circunstâncias; realizam análises sofisticadas de custo-benefício; e, finalmente, definem e realizam ações apropriadas em resposta aos estímulos ambientais”.( MANCUSO, Estefano. A revolução das plantas. P.12)
** Precursora da Agroecologia no Brasil, a agrônoma Profa. Dra. Ana Maria Primavesi conferiu ao solo o papel de principal agente propagador da vitalidade no meio ambiente, valorizando a interação dos insetos, fungos e nutrientes para o manejo do solo, que culmina numa agricultura transformadora para a vida multiespecie no planeta Terra.
Canteiro - assembleia. Detalhe das folhas do Meloeiro e Abacaxi
Outras plantas, como a erva cidreira de folha (Lippia alba) e a hortelã (Mentha Spicata), parecem verdadeiras desbravadoras expansivas, pois conseguem projetar acrobaticamente seu
corpo para colonizar o espaço e se proliferarem. Esse tipo de crescimento foi a maneira que estas plantas encontraram para propagar-se assexuadamente. A expansão acontece da seguinte maneira: primeiro a planta deixa cair seu galho, ou estolho no chão, depois, faz nascer dele uma nova rama (uma cópia genética idêntica da planta matriz), e por último, quando esta adquire sua própria raiz, ela se desvencilha e se torna independente da planta “mãe”. O movimento, que parece com um mergulho ou uma “pernada” no solo, é realmente bonito de ver, só que ao mesmo tempo, se não for controlado, a planta toma conta de todo o espaço com seus galhinhos ligeiros.
Diferente dos outros seres desta assembleia, o Abacaxi (Ananas comosus) permanece humildemente em seu lugar. E de tão “reservado”, é fácil esquecer que está lá, se não fosse por sua ostentosa folhagem armada de espinhos, que lembra inclusive uma coroa. Os espinhos, ou serrilhas que ficam nas bordas da folha, alteram toda a relação que se tem com a superfície do canteiro, posto que se não se toma cuidado, eles ferem gravemente a pele quando são roçados. Os espinhos das plantas sempre me pareceram uma evidência de sua capacidade de resistir e de dar uma resposta para o mundo em forma de uma “autodefesa”* vegetal.
* Para Elsa Dorlin, a "autodefesa", ao contrário da “legítima defesa” é a única alternativa que resta as populações discriminadas, ou desamparadas de lutarem (politicamente) pelo seu direito de existirem. Tendo em vista a situação de vulnerabilidade das plantas em relação ao seus predadores, desloco, de forma poética, essa categoria de “autodefesa” para o comportamentos que algumas plantas desenvolveram para se defenderem.
Canteiro - assembleia. Detalhe flor do Maracujá
Stefano Mancuso em seu livro “Revolução das plantas”, conta como a aproximação entre humanos e plantas é na verdade uma história de coevolução (naturocultural) onde ambos os lados saem ganhando ao fornecerem “recursos” um para os outros. Se por um lado humanos/animais podem obter das plantas comida, oxigênio, recursos energéticos, material para construção, roupas e até medicamentos, as plantas, por sua vez se, beneficiam desta relação obtendo um “vetor supereficiente” para se espalharem por diversos lugares do planeta. Desta maneira, nós humanos podemos ser igualmente considerados como um recurso para elas. O lado ruim dessa relação é que muitas espécies foram sendo excluídas por não serem tão “vantajosas” quanto as que “produzem” de forma mais eficiente ou proporcionam mais “calorias” * na alimentação.
A perda de diversidade vegetal foi uma das terríveis consequências advindas da escolha que fizemos em nos associar a uma quantidade reduzida de plantas. As chamadas monoculturas, ou plantations, são um modelo de produção agrícola onde apenas uma espécie é cultivada por grandes extensões de terra. Esse sistema passou a proliferar a partir do século XVIII na Europa com a Revolução Industrial, e depois se espalhou por praticamente todo mundo num processo de intensificação voraz da racionalização da paisagem para a produção de ativos capitalistas. Um dos principais problemas das monoculturas, é que quanto menos variedade, diversidade e sortimento de espécies associadas, maior o risco de pestes e patógenos surgirem e se propagarem. Além disso, esse modelo promove um empobrecimento da biodiversidade, erosão do solo, secas, contaminação do lençol freático e a dependência de adubos e defensivos químicos nocivos para o meio ambiente. Anne Tsing diz que ao se investir tudo na superabundância de uma só lavoura, os humanos se esqueceram de um ingrediente importante – o amor. E ao invés do romance, conectando as pessoas com as plantas e os lugares, o que temos são monoculturas que nos apresentam o cultivo pela coerção.**
* "Um negócio tão vantajoso que hoje apenas três espécies de plantas – trigo, milho e arroz – fornecem cerca de 60% das calorias consumidas pela humanidade e, em troca, colonizaram enormes áreas em todos os continentes, superando qualquer concorrente vegetal em termos de disseminação na Terra.” (MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas.P.52)}
** Outra autora importante para se pensar sobre a monocultura como um sistema de poder é Vandana Shiva. Recomendo a leitura de seu livro “Monoculturas da mente”. Nele ela faz um alerta sobre os perigos dos sistemas de monocultura – “primeiro as monoculturas ocupam a mente e depois são transferidas para solo”. A diversidade é então uma das alternativas à monocultura, à homogeneidade, à uniformidade e ao mono pensamento. (SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente. P. 17)
Monocultura de Soja. Mato Grosso Brasil. Imagem de satélite, Google Earth 2020
Esse insaciável desejo por uma superabundância e pelo acúmulo de riquezas sem fim, parece animar todo um sistema econômico exploratório e opressor, que nas últimas décadas, tem colaborado em produzir e fazer circular não só mercadorias e commodities, mas um sentimento de fadiga generalizado que assola não só humanos, mas paisagens e ecossistema inteiros. Identifico essa fadiga como mais um dos sintomas diagnosticáveis de um “mundo danificado”, para usar uma expressão de Anne Tsing. Aparentemente a recente epidemia de Covid19 poderia ser compreendida como algum tipo de resposta vinda desse “mundo danificado”. Uma resposta radical ao advento de tantas perturbações.*
Há pelo menos duas décadas cientistas alertavam sobre o risco de micro organismos que viviam em equilíbrio em seu habitat “natural” migrarem para o cotidiano urbano à medida que se avançava sobre as florestas. O planeta Terra, como um grande sistema vivo que é, reage a toda classe de acontecimentos e perturbações que ocorrem em seu corpo. Só que as consequências da Terra podem ser bastante arriscadas para nós seres vivos, pois implicam em alterações climáticas, mutações ecológicas, na disseminação de vírus infecciosos e na possibilidade da extinção massiva de inúmeras espécies, incluindo nós humanos.
Como então retornar novamente a esse canteiro-assembleia para pensar junto com todas essas questões? Impossível tudo isso não reverberar de alguma forma e se converter em algum tipo de substância fértil, boa para misturar a um composto de práticas, estéticas, pensamentos e personagens. Mesmo que seja na situação de uma reunião de plantas sobre uma porção de terra tão pequena, que para tantos pode parecer desordenada ou precária. Pensando bem, essa assembleia-canteiro me parece muito mais rica e plural em sua composição ** do que um campo de soja inteiro.
*perturbações são mudanças relativamente rápidas nas condições dos ecossistemas, não são necessariamente ruins – e não são necessariamente humanas, mas dizem respeito a um mundo que está sempre em movimento
** Aqui a palavra composição é utilizada num sentido polisêmico. Podendo levar a pensar numa composição no
campo da arte tanto quanto numa composição no campo da paisagem biológica. No campo
da arte uma composição
é a distribuição harmoniosa de um conjunto de elementos visuais, em que o lugar ocupado pelas figuras, os espaços vazios
que as rodeiam, as proporções, todos são importantes. No campo da paisagem biológica essa composição diz respeito as diversas trajetória que causam algum impacto na paisagem, humanas
e não humanas. Juntas elas compõem o que Anne Tsing descreve como “ritmos polifônicos da paisagem”, isto é, a atuação de “múltiplas histórias conjuntas”. (TSING,2019.P.130)
Canteiro - assembleia. detalhe com gavinha
Pensar a jardinagem como uma conversa naturocultural me instigou recentemente a projetar um mobiliário para estabelecer uma situação de encontro íntimo entre seres humanos e plantas. A ideia era observar e sentir como cada planta ou um conjunto delas, poderia exercer alguma influência ou participar de uma conversa. O mobiliário é na verdade bastante simples - uma mesa estreita e dois bancos de concreto. A mesa, no lugar de uma superfície plana, possui um canteiro embutido, no qual se podem plantar espécies vegetais de inúmeros tipos. As plantas estabelecem então um limiar, um espaço de presença e de atravessamento entre os dois corpos que estão sentados nos bancos.
Na cultura ocidental, as plantas são muitas vezes tratadas como objetos inanimados, uma fonte de alimentação ou meros elementos decorativos no espaço que compartilham com humanos. Contudo, elas estão por toda parte, e mesmo quando se inventaram as cidades, elas não ficaram de fora - foram parar nos jardins e hortas, levadas para descansar dentro de vasos, em arranjos multifacetados, também presentes nas guirlandas e coroas de celebrações diversas, como natal e velórios. Plantas são realmente boas companheiras dos humanos, repletas de conotações simbólicas e metafóricas. Entretanto, seria interessante levar em consideração que além de prover calorias, decorar, trazer “alegria”, frescor, conforto e luxo para uma situação, plantas podem promover silêncios, disparar sensações e memórias, desatar conversas sobre nossa existência.
Mesa para conversar com plantas. Maquete em cerâmica. 2020
Em seu livro “A vida das plantas”, Emanuele Coccia fala da capacidade que as plantas possuem de transformarem o mundo e a realidade na qual ficam suas raízes. Parece exagero para aqueles que sempre colocaram a vida animal como base para tudo que há. Mas se paramos pra pensar que a vida tal qual a conhecemos só foi possível e, todavia, o é por conta da colonização das plantas no planeta, mudamos rapidamente de opinião. Embora pareçam ausentes em sua existência, ou como diz Coccia, “extraviadas num longo e surdo sonho químico”, as plantas não estão trancadas em uma vida alheia e indiferente com o mundo. Na verdade,
“Nenhum outro vivente adere mais do que elas ao mundo circundante”. Como não podem se mover, escolher o local onde ficar, elas só podem estar expostas como estão ao mundo ao seu redor. Elas seriam, portanto, “a forma mais intensa, mais radical, mais paradigmática do estar-no-mundo.” (COCCIA, 2018.P.13)
E todo seu corpo é incrivelmente adaptado para aproveitar ao máximo o que o ambiente lhe fornece - absorvem tudo o que precisam para crescer e se proliferarem ficando exatamente
onde estão. Portanto, conversar com as plantas, observá-las atentamente, interrogá-las, pode ser um meio de compreender o que significa estar-no-mundo de forma mais intensa e radical e de não ignorar nossa condição terrestre.
*A artista estadunidense Taryin Simon, que combina em seu trabalho a fotografia, a performance, a pesquisa e a narrativa escrita, em sua série intitulada “Paperwork and the Will of Capital” de 2015, após pesquisar fotografias de arquivos que registravam acordos políticos significativos no âmbito internacional entre figuras poderosas, recriou os arranjos florais centrais que flanqueavam estes acordos. Ela trabalhou com um botânico para identificar as espécies de plantas em cada imagem e usou essa informação para recriar e fotografar os 36 buquês que compõem esta série.
BIBLIOGRAFIA
ASSUNTO, Rosario. Ontologia y teleologia del jardín. Madrid: Tecnos. 1991
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Florianópolis: Cultura e barbárie. 2018
DORLIN, Elsa. Autodefesa: uma filosofia da violência. São Paulo:Ubu editora.2020
LATOUR, Bruno. Diante de Gaya. São Paulo:Ubu editora.2020
MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas. São Paulo:Ubu editora. 2019
MERCHANT, Carolyn. The Death of nature. San Franciso: Harper & Row. 1980
HARAWAY, Dona. Seguir con el problema. Bilbao: Edición consoni. 2019
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34. 2012
SHIVA. Vandana. Monoculturas da mente. São Paulo: Editora Gaya Ltda. 2002
TSING, Anne Lowenhaupt. Viver nas ruínas:paisagens multiespécies no antropoceno. Brasilia: Mil folhas.2019